Matawai: Narrativas territoriais no Suriname

O povo Matawai do Suriname, uma comunidade que outrora se sentiu esquecida pelo resto do mundo, está inovando ao usar um novo aplicativo de narrativas-geográficas de código aberto chamado Terrastories para criar um repositório extraordinário de conhecimento tradicional através de história oral. O objetivo do trabalho é assegurar que as futuras gerações dos Matawai possam aprender sobre a sua história, cultura e identidade na forma que o seu povo sempre fez: através das palavras dos anciões.

Morning view of Nieuw Jacobkondre, Upper Saramacca River. Photo Credit: MediaVision N.V.
Vista matinal de Nieuw Jacobkondre, Alto Rio Saramacca. Crédito da foto: MediaVision N.V.

Quem são os Maroons Matawai e por que sua história é tão importante para eles

O povo Matawai do Suriname, uma comunidade que outrora se sentiu esquecida pelo resto do mundo, está inovando ao usar um novo aplicativo de narrativas-geográficas de código aberto para criar um repositório extraordinário de conhecimento tradicional através de história oral. O objetivo do trabalho é assegurar que as futuras gerações dos Matawai possam aprender sobre a sua história, cultura e identidade na forma que o seu povo sempre fez: através das palavras dos anciões.

A história do Matawai começa há mais de três séculos, quando o Suriname era uma colónia holandesa de plantações. Em vez de ter que suportar uma vida cruel e levada por punições nos cativeiros das plantações costeiras da colônia, dezenas de povos escravizados africanos tomaram seu destino nas suas próprias mãos e escaparam para as densas florestas tropicais do vasto interior do país. Bandos de fugitivos fugiram subindo os rios, lavando-os o mais a sul que podiam. Escaparam e batalharam com soldados holandeses que tentaram recapturá-los, conduziram invasões para libertar outros da escravidão, o que eventualmente acabou obrigando o governo colonial a assinar um acordo de paz com eles.

Diferentes grupos remanescentes destes escravos fugidos estabeleceram-se na parte central do interior do Suriname, onde seus descendentes continuam a residir hoje.

Os membros dessas comunidades, hoje conhecidos como Maroons (Quilombolas), orgulhosamente descrevem os primeiros dias em que os seus antepassados se estabeleceram e lutaram pela terra que agora é seu território, parte da sua história distinta.

Um dos mais pequenos grupos do Maroon é o Matawai, que reside nas margens do Rio Saramacca no centro do Suriname. Para os Matawai, a sobrevivência na floresta sempre dependeu de um conhecimento íntimo do seu território, passado pelos seus antepassados. Narrativas territoriais ajudam-os a determinar onde estão localizados os alimentos ou os recursos, ou onde os perigos se escondem. Mais importante ainda, as histórias orais reforçam sua conexão histórica e cultural com seus territórios, o que, por sua vez, forma sua identidade coletiva e lhes da coragem para proteger seu ambiente natural.

Crédito: MediaVision N.V.

Por que os Matawai começaram a mapear suas terras e registrar sua história

Até alguns anos atrás, o território Matawai estava entre os mais remotos do país, acessível apenas por barco ou por aviões pequenos. No entanto, atividades desenfreadas e destrutivas de mineração de ouro, novas torres telefónicas, e a recente criação de uma rede de estradas que atendem operações madereiras e conectam os 21 povoados Matawai trouxeram mudanças rápidas e abrangentes.

Nesta paisagem em mudança, os jovens Matawai estão cada vez mais buscando trabalho nas minas de ouro ou saindo para trabalhar e viver uma vida mais moderna em Paramaribo, a capital do país.

Muitos povoados Matawai têm um ar de vazio ou desolação, e apenas alguns Matawai continuam a viver de forma tradicional. Os anciões que restam lamentam frequentemente que os jovens parecem estar mais interessados nos seus telefones do que na sua história, e pararam de compartilhar histórias com as novas gerações. Consequentemente, a longa tradição oral dos Matawai de sentar em rodas e trocar histórias sobre o Fositen (referindo-se às "primeiras vezes" que seus ancestrais chegaram a estas terras) corre risco de ser perdida no tempo.

Para evitar que isso aconteça, a organização comunitária local Stichting voor Dorpsontwikkeling Matawai passou os últimos anos documentando suas tradições de contar histórias usando gravadores de vídeo e mapas interativos. Com suporte da equipe do Amazon Conservation Team (ACT), a organização treinou uma equipe de jovens Matawai interessados para registrar e entrevistar seus anciões sobre os inúmeros lugares nomeados e historicamente significativos em suas terras ancestrais.

Até agora a iniciativa produziu mais de 17 horas de filmagem sobre cerca de 150 lugares com importância histórica ao longo do rio Saramaca. Para muitos dos jovens Matawai envolvidos, o projeto foi a primeira oportunidade para ouvir as história de suas terras natais.

O ancião Matawai Josef Dennert, refletiu a respeito do projeto: “… [meu] sábio interior esteve dormido todo esse tempo, mas então percebi que não era tarde demais. Tive que segui-los e finalmente aplicar meu conhecimento."

Crédito: Amazon Conservation Team

Como esse trabalho levou os Matawai aos Arquivos do Instituto Smithsonian

O esforço necessário para documentar e preservar as histórias orais da comunidade levou os Matawai a buscar apoio de uma série de instituições - algumas muito distantes das suas terras natais. Em setembro de 2018, Dennert e outros dois Matawai viajaram para Washington, DC para pesquisar os papéis de Edward C. Green no Instituto Smithsonian. Green, um antropólogo, juntou uma coleção de notas, fotografias, e gravações em áudio capturadas durante o seu tempo em campo com os Matawai no início da década de 1970 e recentemente os doou para os Arquivos Antropológicos Nacionais do Smithsonian. Patrocinados pelo Programa de Recuperação de Vozes do Instituto Smithsonian, os três pesquisadores Matawai foram capazes de acessar estes materiais históricos inestimáveis pela primeira vez, e foram permitidos levar de volta cópias para compartilhar com o resto da comunidade. No final da experiência, basja (líder tradicional) e Tina Henkie, participante da pesquisa, refletiram a respeito do processo:

"Estes antropólogos escreveram coisas, enquanto meu povo lá atrás, não conseguia escrever. Mas contaram histórias, que depois os antropólogos registaram. E agora que as pessoas não estão mais conosco, deveriámos poder encontrar a história em algum lugar. E é isso que estamos fazendo agora neste arquivo; Eu tento imaginar como meus antepassados viveram nessa época. E isso me dá um sentimento de orgulho de ser Matawai, porque me ajuda a conhecer minhas raizes."

Crédito: Amazon Conservation Team

O Desenvolvimento de Terrastories

Para permitir o armazenamento das gravações das histórias orais, vinculando-as aos mapas dos territórios ancestrais, a ACT colaborou com o Mapbox, uma empresa de tecnologia de mapeamento, e a Ruby para o Bem, uma equipe de desenvolvedores voluntários, para criar um novo aplicativo de narrativas territoriais chamado Terrastories.

A interface do aplicativo consiste em um mapa interativo e uma barra lateral com conteúdo midiático e histórias. Usando um sistema de gerenciamento de conteúdo, os Matawai podem adicionar lugares e histórias importantes aos mapas e designar configurações de privacidade do conteúdo original. Terrastories funciona sem acesso à internet, e o código é aberto para que qualquer comunidade do mundo possa adaptá-lo para mapear suas próprias narrativas tradicionais em seus territórios.

Terrastories é um aplicativo para comunidades mapearem, protegerem e compartilharem histórias sobre seus territórios. Pode ser usado por indivíduos ou comunidades que queiram conectar conteúdo de áudio ou vídeo a lugares no mapa. Foi projetado para ser fácil de usar e com uma interação divertida, permitindo que membros da comunidade explorem livremente sem precisar de qualquer conhecimento técnico. Saiba mais: Terrastories: uma ferramenta para narrativas territoriais

Em outubro de 2018, em Paramaribo, a Stichting voor Dorpsontwikkeling Matawai apresentou uma versão de Terrastories completa com todas as histórias e mapas dos Matawai diante de um público dos membros da comunidade Maroon, líderes tradicionais e funcionários do governo do Suriname. O projeto estimulou uma conversa a nível nacional sobre o reconhecimento e a protecção da cultura Maroon do Suriname como património cultural intangível.

Crédito: Amazon Conservation Team
Crédito: Judith Andrews

O Processo de Mapeamento das Histórias Orais dos Matawai

Em 2020, a Equipe de Mapeamento de Histórias Orais dos Matawai concluiu o seguinte processo com as dez aldeias ao longo do Alto Rio Saramacca.

Elementos:

Pessoas: Um dos aspectos mais importantes que norteiam este projeto é o desejo e o entusiasmo em nome dos Matawai de repassar suas histórias mais preciosas para a juventude, e assegurar que as futuras gerações tenham sempre acesso a esse conhecimento e para que compreendam suas raízes. Este desejo é fundado numa profunda apreciação e orgulho da luta dos seus antepassados para conquistar o direito a existir como pessoas livres na floresta tropical.

Crédito: MediaVision N.V.

Valores: Autonomia foi chave para o sucesso deste projeto, com a organização comunitária Matawai assumindo a liderança na concepção do projeto, apresentando o conceito e o plano de trabalho à comunidade, e identificando anciões e guardiões do conhecimento. As ONGs envolvidas desempenharam um papel mais solidário e sempre trabalharam em conjunto com membros da comunidade Matawai, que ajudou construir relações de confiança. Além disso, a propriedade dos dados pela comunidade foi fundamental para este projeto, especialmente em relação aos Matawai terem a capacidade de determinar quem tem acesso às histórias e aos mapas. Estes valores informaram também fortemente o desenvolvimento do Terrastories.

Crédito: Amit Madheshiya.
Tecnologia: 
  • Folhas grandes de papel, canetas coloridas
  • Dispositivos de GPS portáteis (Garmin 64)
  • Cadernos à prova d'água
  • Um laptop e discos de backup
  • Projetores leves e portáteis para que toda uma aldeia pudesse rever os mapas à medida que estavam sendo produzidos, e assistir a vídeos das histórias orais
  • Gravador de áudio (Zoom H6N)
  • Gravador de vídeo (Canon Rebel t3i)
  • Software GIS e cartografia: ArcGIS, Mapbox Studio
  • Software de design: Adobe InDesign
  • Software de edição de vídeo: Adobe Premiere
  • Mini-computadores que funcionam como servidores offline para Terrastories

Recursos para Oficinas e Viagens:

  • Barco, combustível e alimentos
  • Kits de caminhada: botas de borracha, mochilas, impermeabilizantes etc.
  • Rascunho de mapas impressos por krutus em cada uma das aldeias Matawai

A partir de 2019, os Matawai registraram mais de 17 horas de filmagem com 35 anciões das comunidades, consistindo de 150 histórias para mais de 300 lugares em suas terras ancestrais. Eles também mapearam mais de 700 nomes de lugares historicamente significativos no seu território, a bacia do Rio Saramacca.

Contratos Comunitários: Liderado pela organização comunitária Stichting voor Dorpsontwikkeling Matawai, as organizações envolvidas no projeto chegam a acordo e recebem permissão dos líderes tradicionais dos Matawai para iniciar o projeto. Cada uma das partes - Stichting voor Dorpsontwikkeling Matawai, e a Amazon Conservation Team-Suriname (ACT) - chegam a um acordo sobre suas funções e responsabilidades.

Crédito: MediaVision N.V.

Esboçando Mapa: Em 2015, o projeto começa com krutus (oficinas) nas aldeias durante as quais os membros da comunidade desenham e tomam notas em mapas em branco do rio Saramacca, usando seus conhecimentos sobre a paisagem. Um geógrafo da equipe ACT compila os dados em mapas GIS usando ArcGIS, que servem como a primeira versão dos mapas ancestrais dos Matawai.

Crédito: Amazon Conservation Team

Treinamento de GPS e Coleta de Saberes Sobre a Terra: Membros da comunidade, homens e mulheres, são treinados pela ACT para usar unidades GPS portátil (Sistema Global de Posicionamento) para gravar dados espaciais sobre o uso da terra, tais como rotas de caçada, agricultura ou recursos de coleta. Durante esta fase, alguns dos dados inicialmente elaborados em mapas de papel são capturados com maior precisão usando as unidades de GPS.

Crédito: Amazon Conservation Team

Expedições a Campo para Mapemanto: Em duas ocasiões em 2015 e em 2017, equipes de mapeamento (compostas pela juventude Matawai, um ancião Matawai e geográfos da ACT) viajam pelo rio Saramacca durante várias semanas, usando aparelhos de GPS para mapear nomes de riachos, corredeiras, ilhas, antigos povoamentos, sítios históricos, locais de coleta de recursos naturais e outros lugares de importância. A equipe da ACT utiliza as informações para melhorar os mapas do ArcGIS.

Crédito: Amazon Conservation Team

Validação do mapa: Após estas fases de coleta de dados, os geográfos da ACT usam o ArcGIS para compilar mapas territoriais dos Matawai em várias ocasiões, a Stichting voor Dorpsontwikkeling Matawai organiza krutus onde membros da comunidade dão retorno sobre a precisão dos dados, erros de ortografia ou nomeação e lugares que ainda não foram mapeados. Um projeto abrangente de mapa de terras ancestrais é finalizado no fim de 2017.

Crédito: Amazon Conservation Team

Gravando Histórias Orais: Durante a fase final de mapeamento, a equipe começa a gravar histórias orais com anciões que são guardiões do conhecimento e estão familiarizados com as histórias Matawai como narradas por seus antepassados. De 2017 até 2018, a equipe registrou conversas com 35 anciões dos povoados Matawai ao longo do rio Saramacca e que vivem na capital da cidade de Paramaribo.

Crédito: Amazon Conservation Team

Design e Impressão de Mapas: Em 2018, o ACT finaliza mapas cartográficos para as terras ancestrais Matawai usando o ArcGIS e o Adobe InDesign. Estes são impressos e entregues a cada povoado, onde são frequentemente exibidos no kuutu wosoe (salões de assembleia).

Crédito: Amazon Conservation Team

Construção do Terrastories: Os geógrafos do ACT colaboram com uma equipe de desenvolvedores voluntários para preencher os mapas do Terrastories com os mapas dos Matawai e suas histórias orais. Para fazer isso, os mapas são enviados para Mapbox Studio e baixados como mapas que funcionam offline. O aplicativo Terrastories com os mapas e histórias dos Matawai é armazenado em mini-computadores que podem correr offline. Em várias ocasiões, a equipe os leva para os dois povoados centrais dos Matawai, Pusugrunu e Nieuw Jacobkondre, e apresentam as histórias orais e os mapas à comunidade, nas escolas públicas e para as lideranças tradicionais.

Crédito: Amit Madheshiya.

Servindo o Terrastories Sem Internet: Dois mini-computadores estão rodando Terrastories e o conteúdo dos Matawai e doados para as escolas públicas dos povoados de Pusugrunu e Nieuw Jacobkondre. As escolas são encarregadas de proteger as informações e administrar o acesso, enquanto a comunidade continua a descobrir as permissões para cada história individual, liderado pela Stichting voor Dorpsontwikkeling Matawai.

Leituras e visualizações adicionais: